O direito não é matéria exata, não deve ser endurecido, é ciência humana, social e que deve atender a sociedade em suas diferentes causas e conflitos. Portanto, é óbvio que todo operador do direito deve compreender que cada caso, cada conflito, cada processo, é individual e cada particularidade é válida, é considerada.
O princípio da insignificância também é conhecido como princípio da bagatela, e é um mecanismo muito importante para a boa aplicação do direito penal brasileiro.
Tal princípio possibilita que um caso seja analisado de forma menos endurecida, mas não menos rígida, verificando as consequências do delito e se elas são insignificantes ou não.
O artigo de hoje tem como objetivo compreender os conceitos, requisitos e fundamentos do princípio da insignificância, observando cada especificidade e tentando abarcar casos concretos para que você, leitor, saia da leitura com conteúdo e conhecimento suficiente para não mais confundir tal tema.
O que é o princípio da insignificância?
O princípio da insignificância ou da bagatela é um princípio jurídico, aplicado ao direito penal, com objetivo de excluir ou afastar a tipicidade penal, não considerando o ato praticado como crime.
Mas o que isso quer dizer de fato? Significa descaracterizar um ato que, se fosse analisado apenas sob a rigidez das leis, seria compreendido como crime, mas, por ter consequências ínfimas acaba por ter sua tipicidade destituída, isentando o autor da severidade das penas.
O princípio da insignificância não está previsto em lei e é utilizado como ferramenta do direito penal, originando-se quando situações práticas ocorrem e se enquadram.
Há pontos que precisam ser conceituados, como:
1. Tipicidade é a adequação de um ato criminoso à Lei Penal;
2. Tipicidade Penal é formada pela tipicidade formal mais a tipicidade material;
3. A tipicidade formal se configura quando a conduta praticada pelo agente adequa-se à descrição prevista no ordenamento penal;
4 . Já a tipicidade material consiste na existência de lesão ou exposição de perigo de um bem jurídico penalmente tutelado.
Para então compreendermos que a incidência do princípio da insignificância exclui a tipicidade em seu aspecto material. Isso porque, ao furtar 1 pote de manteiga, por exemplo, houve a prática do crime de furto em termos formais. Mas não sob a ótica da insignificância.
Nela, acredita-se que não há resultado relevante pelo qual se deva mover o aparato do Estado para repelir o furto praticado, se não houve lesão ou perigo de lesão grave.
Como funciona o princípio da insignificância?
O princípio da insignificância ou bagatela para ser entendido precisa estar aplicado num caso concreto, assim é a melhor maneira de explicar como esta ferramenta auxilia o direito penal brasileiro, não deixando que a Justiça deixe de ser justa e considere apenas leis por leis, sem levar em conta o social, a humanidade.
Considere, portanto, uma situação hipotética, mas que vemos acontecer quase diariamente: uma mãe com fome pega para si e para sua família uma lata de leite de um mercado do bairro em que mora, sem que ninguém saiba ou perceba. Se levada ao pé da letra da lei, a ação será configurada como furto, tipificado no Código Penal brasileiro. Vejamos artigo 155, CPP:
“Art. 155 – Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel:
Pena – reclusão, de um a quatro anos, e multa.
§ 1º – A pena aumenta-se de um terço, se o crime é praticado durante o repouso noturno.
§ 2º – Se o criminoso é primário, e é de pequeno valor a coisa furtada, o juiz pode substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuí-la de um a dois terços, ou aplicar somente a pena de multa.
§ 3º – Equipara-se à coisa móvel a energia elétrica ou qualquer outra que tenha valor econômico”.
Levando em consideração o princípio da insignificância e aplicando-o no exemplo acima citado, aplicar a pena disposta no artigo 155 do Código Penal é algo, no mínimo, insensato e de certa forma injusto, visto que reclusão de um a quatro anos, além da multa, é muito para uma mãe de família que está passando fome e desesperada para alimentar seus filhos. O ato da mãe não causou dano formal ou material a nada nem a ninguém, sendo verdade que uma lata de leite não vai levar o mercado à falência, portanto, é o ato dela insignificante.
É dessa forma que funciona o princípio da insignificância, aplicando-o caso a caso, fazendo com que o direito penal não seja apenas o rigor das leis, mas considere os atos humanos, o contexto social, econômico e até emocional.
Quem aplica o princípio da insignificância?
Aplicar ou deixar de aplicar o princípio da insignificância? Quem, em nosso ordenamento jurídico, pode fazê-lo?
Bom, conforme o informativo 441 do STJ, apenas o Poder Judiciário possui poderes para reconhecer o princípio da bagatela. O Min. Relator afirma, in verbis: no momento em que se toma conhecimento de um delito, surge para a autoridade policial o dever legal de agir e efetuar o ato prisional. O juízo acerca da incidência do princípio da insignificância é realizado apenas em momento posterior pelo Poder Judiciário, de acordo com as circunstâncias atinentes ao caso concreto. Logo, configurada a conduta típica descrita no art. 329 do CP, não há de se falar em consequente absolvição nesse ponto, mormente pelo fato de que ambos os delitos imputados ao paciente são autônomos e tutelam bens jurídicos diversos. (HC 154.949-MG, Rel. Min. Felix Fischer, julgado em 3/8/2010.)
Quando é aplicado o princípio insignificância?
Avaliando tudo o que foi dito e lido até aqui, pode-se perceber que o momento de aplicação do princípio da insignificância é aquele quando efetivamente conclui-se que a lesão jurídica causada por determinada conduta é inexpressiva, pouco reprovável, minimamente ofensiva e não representa um perigo social.
Portanto, cada caso deverá ser analisado isoladamente e individualmente, dando a chance do Poder Judiciário avaliar quando o princípio da bagatela deverá ser aplicado ou não.
Quais os crimes cabe o princípio da insignificância?
Você deve estar se perguntando: como assim não se consegue aplicar o princípio da insignificância em todos os crimes? Pois é, não se consegue. Ainda que o princípio da bagatela seja aplicado conforme decisões humanas, sem estar expressamente escrito em lei, é preciso considerar que no direito quase tudo possui limites.
Vejamos, então, alguns crimes onde a aplicação do princípio da insignificância pode ser cabível:
1 – Furto
Como já se percebeu, a maioria dos exemplos de aplicação se dá em relação ao crime de furto, não obstante, deverá ser considerado o valor do objeto, requisitos subjetivos da vida pessoal do agente e outros aspectos relevantes da conduta imputada (STF. 1ª Turma. HC 120016, julgado em 03/12/2013).
Importante observar que, em regra, não se aplica o princípio da insignificância para o furto qualificado. Entenda:
Art. 155, § 4º, I do CP (furto com rompimento de obstáculo): decidiu-se que, no caso de rompimento de obstáculo, há uma maior reprovabilidade do comportamento do réu (STJ. 6ª Turma. HC 277.214/RS, julgado em 05/12/2013).
Art. 155, § 4º, II do CP (furto com abuso de confiança): em determinado caso prático, foi negada a aplicação do princípio para o réu que tentou furtar 5 rolos de fio cobre da empresa na qual era funcionário, avaliados em R$ 36,00, uma vez que a reprovabilidade se mostrou acentuada já que ele era funcionário da loja, de forma que traiu a confiança de seus empregadores (STJ. 6ª Turma. HC 216.826/RS, julgado em 26/11/2013).
2 – Crimes contra a ordem tributária
Segundo precedente do STF, o novo valor máximo para fins de aplicação do princípio nos crimes tributários passou a ser de 20 mil reais. (Precedente: STF. 1ª Turma. HC 120617, Rel. Min. Rosa Weber, julgado em 04/02/2014)
3 – Crimes ambientais
A aplicação do princípio da insignificância nos crimes contra o meio ambiente é restrita e deve ser muito bem avaliada, pois o direito ao meio ambiente protegido e saudável é constitucional. Reconhecer, portanto, a atipicidade material do fato, deve ser em casos onde a conduta do agente expressa pequena reprovabilidade e irrelevante periculosidade social.
Nos crimes ambientais, o bem jurídico tutelado é a proteção ao meio ambiente, direito de natureza difusa assegurado pela Constituição Federal, que conferiu especial relevo à questão ambiental. (STJ. 5ª Turma. RHC 35.122/RS, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 26/11/2013).
Requisitos do princípio da insignificância
Obviamente, a aplicação do princípio da insignificância deve obedecer alguns parâmetros e possui requisitos certos que o próprio Supremo Tribunal Federal já tratou de elucidar.
Para aplicação não basta a análise apenas do valor do bem jurídico ofendido, ou das condições subjetivas do agente, como por exemplo: reincidência, condições da vítima ou habitualidade na prática de crimes; é preciso também que se demonstre:
• Mínima ofensividade da conduta do agente;
• Ausência de periculosidade social da ação;
• Reduzido grau de reprovabilidade do comportamento;
• Inexpressividade da lesão jurídica causada.
Preenchendo tais requisitos, aí sim a conduta do agente poderá não ser enquadrada, isto é, tipificada levando em conta o princípio da bagatela.
Exclusão da tipicidade
Quando se fala em princípio da insignificância, rapidamente também se entra numa discussão de exclusão da tipicidade. Ora, a tipicidade possui também seus desdobramentos e antes de adentrar nesse tema, é preciso compreender a teoria do delito. É através da teoria do delito e seus critérios que as ações são identificadas como criminosas ou não.
A teoria do delito configura uma conduta como delito a partir de três substratos diferentes: tipicidade, isto é, a conduta precisa estar expressa enquanto criminosa pela lei; antijuridicidade, ou seja, a ação está contrariando o que estabelece a lei; e a imputabilidade, isto é, o autor é culpado pela conduta realizada e tem consciência do fato.
A tipicidade, contudo, divide-se em tipicidade formal e material, sendo a primeira aquela que tem relação direta com a lei, apresentando o comportamento como ação penalmente tipificada. A tipicidade material trata do impacto real que a conduta trará tanto para o afetado, quanto para o bem, para o direito e para a sociedade em geral.
Nota-se, então, que alguém que furta uma lata de leite ou um pão para comer não está causando dano material notável, nem vai impactar de forma grave a vítima ou a sociedade ou o direito propriamente dito. Vejamos que o crime considerado insignificante perde sua tipicidade material, não deixando a ação de estar tipificada no Código Penal, mas não é justo ou moral que se puna com tanto rigor aquele que, de fato, não impactou notadamente ninguém.
Aplicado ao réu reincidente
Verdade seja dita, historicamente o réu reincidente, isto é, aquele que possui ficha criminal e já cometeu atos ilícitos, tende a ter mais dificuldade em ver aplicado em um caso seu o princípio da insignificância, haja vista que ter uma condenação penal ou se ver por vários vezes envolvidos em práticas consideradas delituosas pesa e muito.
Porém, nos últimos anos é possível verificar uma movimentação no sentido de se aplicar o princípio da insignificância mesmo tendo o autor antecedentes criminais. A decisão do ministro do STF Gilmar Mendes, em abril de 2020, sobre o Habeas Corpus nº 18.138-9 é prova desse novo posicionamento.
O ministro afirmou que “é equivocado afastar sua incidência [do princípio da insignificância] apenas pelo fato de o recorrente possuir antecedentes criminais”.
Importante, então, perceber que a jurisprudência mais atual sobre a aplicação do princípio da insignificância sobre casos onde o réu é reincidente aponta para a aprovação do pedido, independente dos antecedentes.
São muitas as teorias, muitos os debates, mas é preciso entender o quão essencial é o princípio da insignificância, o quanto esta ferramenta pode ser benéfica se bem usada, trazendo para o direito penal um lado mais sensível, capaz de analisar um caso com rigor, mas com mais humanidade, mais moralidade e, talvez, mais justiça.
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